Tapioca: o que é, como se faz.
Por Aline Mascarenhas
Estudante de 3º semestre do curso de Gastronomia da Estácio-FIB
Quem imaginaria que a diversidade linguística poderia provocar tamanha confusão em um tema tão simples? Quando demos início aos trabalhos para produção do nosso Festival da Tapioca, pensamos que seria imprescindível publicar algo que explicasse como a tapioca é feita e o que ela é de fato. Então, arregacei minhas manguinhas e fui buscar informações. Mesmo sabendo que uma boa pesquisa acontece na biblioteca, fui buscar informações iniciais na internet - porque, hoje em dia, acha-se “de um tudo” nela. E foi justamente lá que eu percebi que o Brasil tem concepções diferentes sobre a tapioca. Pra começo de conversa, tapioca, na internet e em quase todo o país, é o que nós, baianos, chamamos de beiju.
Antes de explicar o que é o quê, vamos partir da informação mais básica de todas: tudo isso, beiju, tapioca e outros elementos que serão mencionados mais adiante são produtos da mandioca. Do seu processamento, são desenvolvidos diversos produtos que a gastronomia brasileira, como um todo, utiliza amplamente. O tubérculo é colhido, descascado e moído, para extração de toda a parte líquida que há nela, a manipuera, na qual encontra-se o veneno presente no tubérculo, o ácido cianídrico. Da parte sólida, é feita a farinha de mesa ou “de guerra”, como é chamada na Bahia. Do líquido, produz-se o tucupi. E o que decanta na extração do líquido é a fécula, conhecida, também, como polvilho.
O beiju, ou a tapioca do paulista e do carioca, é uma espécie de panqueca feita da fécula, chamada também de goma ou polvilho doce. Esta goma, umedecida, é peneirada e posta em uma chapa quente para torrar. No processo de torra, a goma vai se unindo, formando uma panqueca maleável. É claro que se o processo demorar muito, ela endurece. No nordeste, é muito comum encontrar outros tipos de beijus, duros e secos, os quais são consumidos com café e/ou leite. Os beijus conhecidos como tapioca são servidos com recheios doces e salgados. Ele também pode ser servido apenas com manteiga.
Mas, e a tapioca tal como é conhecida na Bahia? Bem, a tapioca é outro produto do polvilho. Ela é uma espécie de farinha muito utilizada na produção de bolos, pudins, além dos tradicionais cuscuz e bolinho de estudante, dos tabuleiros das baianas de acarajé. Ela é feita da mesma maneira que se faz o beiju, porém, sem o cuidado em lhe dar forma, bem como em mantê-la úmida e maleável. O polvilho é, deste modo, torrado, como se fosse uma farofa, deixando flocos irregulares. Ele pode ser levemente salgado.
O que se faz com esta tapioca, a baiana, é um espanto. Há quem a consuma pura, acrescentando apenas leite morno e um pouco de sal ou açúcar. Nas ruas de Salvador, pela manhã ainda cedo, é comum encontrar vendedores de mingau. E em seus tabuleiros não falta o mingau de tapioca, docinho e com coco ralado bem fino. Na sorveteria da Ribeira, sorveteria mais famosa de Salvador, e em qualquer caixa de Picolé Capelinha, é possível encontrar a tapioca como sabor a escolher. E ela ainda é uma preciosidade a ser explorada, esperando apenas que cozinheiros audazes encontrem novos usos e receitas nas quais seja estrela.
Vai uma tapioca?
Gostosa e nutritiva, essa comidinha bem brasileira é mais velha que o Brasil.
A noite vai chegando na Prainha do Canto Verde, um cantinho habitado por pescadores no litoral do Ceará. Veinha, apelido de dona Raimunda Ribeiro de Lima, de 51 anos, tem um olho no peixe que está assando no fogão à lenha ali do lado, no quintal, enquanto o outro está na peneira apoiada entre as pernas. Com as mãos, Veinha vai fazendo passar a goma de mandioca umedecida que, devagarinho, cai numa bacia na forma de farinha fina e branca. Dali a pouco será servido à sua família o jantar: tapioca com peixe peixe que o pescador José Firmino de Lima, o Pilé, com quem Veinha teve 15 filhos, trouxe para casa logo que o dia amanheceu e ele encostou sua jangada na praia. Aqui é assim, diz Veinha, pensando nas noites em que ela, seus filhos, noras, genros e netos vão chegando e se acomodando no terreiro atrás da casa para, reunidos, comer com as mãos tapioca com pescado.
É um gesto mais velho que o Brasil. Quando os exploradores europeus chegaram aqui, a tapioca já era parte do cardápio nacional e olha que nem nação havia, no sentido em que a gente usa hoje. A mandioca, na forma de tapioca ou como farinha, aparece no relato de muitos cronistas que, depois de pisarem nessas terras, contaram à Europa que o mundo não só era maior, mas também mais saboroso do que se supunha. É com sua farinha que os brasileiros (...) fazem o pão, escreveu em 1640 o viajante holandês Johan Nieuhof, em seu relato Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil, por exemplo.
A tapioca é feita com a goma da mandioca amarga. É que existem algumas variedades de mandioca. As mais utilizadas na culinária são a doce, que conhecemos com o nome de macaxeira ou aipim, e a amarga, que serve para fazer a goma de tapioca e a farinha. Ambas têm desde sempre lugar importante no paladar e na alimentação de grande parte dos brasileiros, especialmente nas regiões Norte e Nordeste. As mil e uma utilidades da mandioca foram parar até no nome científico que ganhou, no século 18: Manihot utilíssima. Os colonizadores portugueses, claro, aderiram. E há quem diga, inclusive, que a colonização só foi possível graças a ela, pois supriu nossos colonizadores de algo tão básico quanto um pão, diz o antropólogo Rui Murrieta, da Universidade de São Paulo.
O jeito de fabricar a goma e a farinha de mandioca ainda hoje é bem artesanal, parecido com o do período colonial. Casas de farinhas espalhadas pelo Norte, Nordeste e em algumas regiões do Sudeste fazem nos meses de agosto período mais comum da farinhada um processo que se resume assim: descascada, a mandioca é deixada de molho para ser, depois, espremida. Da parte sólida se faz a farinha. A goma que se acumula no fundo do tacho que recebeu o caldo servirá de matéria-prima para a tapioca cujo nome, como dá para imaginar, vem da língua tupi: typi-og, o que significa tirado do fundo.
A goma umedecida é peneirada e assada em uma panela rasa, como uma frigideira circular, ou numa assadeira de barro, como fazem os índios da Amazônia. É aí que ela ganha sua forma final (aprenda como fazer ao lado). Um detalhe: se a tapioca ficar mais tempo em fogo alto, algo em torno de 15 a 20 minutos, ela endurece. Suas extremidades ficam fininhas e formam um biscoito crocante e seco. É o beiju!
Ao gosto do freguês
Pronta a tapioca, vem o recheio, que pode ser doce, salgado ou os dois. Com queijo coalho, por exemplo, como à moda pernambucana e paraibana, herdada do povo do sertão. Com peixe assado ou frito, prato tradicional na mesa daqueles que, como a família de Veinha e Pilé, moram no litoral do Ceará. Há ainda tapioca com peixe e farofa de castanha-do-pará, jeito amazonense de preparar. Ou a tapioca que fugiu às tradições e recebeu recheios de queijo e presunto ou de queijo e doce de goiaba (o Romeu e Julieta).
Hoje tem tapioca até em shoppings do Rio e de São Paulo e em restaurantes de cozinha, digamos assim, mais elaborada, a exemplo daquele da Pousada Maravilha, a mais cara e luxuosa hospedagem da ilha de Fernando de Noronha. Lá, o cardápio oferece como opção de sobremesa adivinhe o quê? Tapioca recheada com coco e leite condensado. Tal qual a receita que vem dando freguesia e muita, com a graça de Deus a seu Francisco da Rocha Passos, de 59 anos, que está todos os sábados na feira da rua Mourato Coelho, em São Paulo, vendendo a sua generosa tapioca doce a 1,50 real.
E tem ainda, claro, o recheio de tapioca que você mesmo pode inventar. Por exemplo: resolvi hoje, pela primeira vez, colocar mel na tapioca que fiz especialmente para ser fotografada para esta reportagem. Acompanhada de café novinho, puxa, ficou uma delícia.
Carboidrato
Tinham razão, portanto, os viajantes estrangeiros que compararam a tapioca a um pão. É tão versátil quanto. Talvez mais, arrisca dizer o chefe de cozinha Antônio Cabral, criador da tapioca com carne de aratu uma espécie de caranguejo ao molho de laranja, entrada que tornou o restaurante Goya, em Olinda, um sucesso.
Como um pão, a tapioca também é formada basicamente de amido um carboidrato que, processado em nosso corpo, se transforma em açúcar. A diferença entre o amido da mandioca e o do trigo é que o primeiro não contém glúten, tampouco fibras. É constituído apenas de carboidrato. Isso faz da tapioca uma fonte mais rica em energia do que um pão, diz Rogério Germani, tecnólogo em alimentos da Embrapa. O melhor é que o carboidrato da tapioca é do melhor tipo, o tipo complexo. Saudável, ele demora mais tempo para ser processado pelo nosso organismo, fornecendo energia por mais tempo e prolongando a sensação de saciedade.
Veja só a sabedoria popular: juntar tapioca com peixe dá uma combinação equilibrada, do carboidrato com a proteína, usada há séculos e séculos. Na Grande Amazônia, estima-se que os índios se alimentem de tapioca e beiju há pelo menos 8 mil anos. É um dos principais itens da alimentação indígena, diz a antropóloga Cláudia Lopez, do Museu Emílio Goeldi, em Belém.
Alimento tão presente em nossa cultura, não é exagero dizer que a tapioca é parte da nossa identidade de brasileiro. O que comemos é um dos traços do que somos, diz a pesquisadora Beliza de Arruda Melo, da Universidade Federal da Paraíba. Faz todo sentido. Pois a comida, a gente sabe, é um dos pontos de maior resistência das culturas humanas. Mais resistente inclusive que a língua, diz Rui Murrieta. Quer dizer, gostos e escolhas alimentares costumam ser o que mais dura na memória de um povo.
Tem mais: a mandioca é de facílima produção, até em solos pobres e secos. Dispensa o uso de adubos e inseticidas. E não tem problema de estocagem, pois, resistente, pode ser conservada no próprio solo daí ser tão viável para a agricultura familiar. Gostosa, barata, fácil de fazer, nutritiva, genuína... Fala a verdade: chamar a tapioca ou a mandioca de utilíssima é até pouco.
Faça você mesmo
1. Num recipiente, cubra a goma de mandioca com água. Em duas ou três horas, a goma ficará como na foto. Umedecida, ficará no ponto para se unir e formar a tapioca.
2. Despeje a água e passe a goma na peneira (de furos largos). Use uma colher ou as mãos para passar a goma, que vai se desfazendo em grãos. Acrescente sal
3. Numa frigideira pré-aquecida (fogo brando), coloque a goma. Calcule uma quantidade que cubra o fundo da frigideira. Despeje com uma colher ou as próprias mãos
4. Espalhe a goma na frigideira. Com o calor, ela irá se transformar rapidamente em tapioca. Este é o momento, se você desejar, de colocar o recheio da tapioca.
5. Dobre a tapioca e deixe-a assando por mais alguns segundos. Lembre-se: quanto mais tempo no fogo, mais consistente a tapioca ficará, podendo se transformar em beiju.
6. Sirva quente. Acrescente manteiga (foto), mel ou o que você desejar. No Nordeste, é comum molhar a tapioca com leite de coco e açúcar; nesse caso, é servida fria.
PARA SABER MAIS
LIVROS
• História da Alimentação no Brasil, Luís da Câmara Cascudo, Global Editora
• Equipamentos, Usos e Costumes da Casa Brasileira Alimentação, Ernani Silva Bruno (org.), Museu da Casa Brasileira
• Comida e Sociedade Uma História da Alimentação, Henrique Carneiro, Editora Campus.
INTERNET
• Embrapa Mandioca e Fruticultura Tropical